Considerações do filósofo sobre a música como
proposta de afirmação da vida
Por
Célia Evangelista de Paula
Esta pesquisa tem por objetivo explorar algumas das principais considerações feitas pelo filosofoFriedrich Wilhelm Nietzsche sobre a música e sua importância para a afirmação da vida, principalmente a partir das obras O nascimento da tragédia (1872), O Caso Wagner e Nietzsche contra Wagner (1888), além de outras vinculadas ao conjunto de textos do filósofo.
Conforme afirma Nietzsche “A música nos oferece momentos de verdadeiro sentimento” pois “Só a música colocada ao lado do mundo pode nos dar uma idéia do que deve ser entendido por justificação do mundo como fenômeno estético” , percebe que “A vida sem a música é simplesmente um erro, uma tarefa cansativa, um exílio”. Nestas citações, percebe-se o quanto o filósofo atribui à música a importância para o pensamento e para a vida, ocupando um lugar central na estética de Nietzsche no que se relaciona à afirmação da existência humana.

Reforça Mosé que “Desta música originária derivaria a música propriamente dita, a poesia lírica e épica, a linguagem prosaica e a cientifica, em ordem decrescente. Nem mesmo a arte musical seria capaz de manifestar esta linguagem tão primordial, esta música dionisíaca, embora seja a que mais se aproxima dela”.
Já Curt Paul Janz, especialista na música de Nietzsche, em entrevista a Paulo César de Souza, explica que “O pensamento de Nietzsche foi musical na medida em que foi fortemente emocional, nascido da vivência do momento – não obstante toda a agudeza do intelecto. Sua musicalidade influi também na configuração, na formade seus escritos, o que por outro lado determina sua relação com a música (…)”.
Ao levantar e confrontar as diversas percepções, considerações e idéias nietzschianas a respeito da música, torna-se quase impossível deixar de fora alguns aspectos pessoais do universo do filósofo. Suasensibilidade, estilo singular, índole romântica, liberdade intelectual, intuição musical e poética são, com efeito, estimulantes nessa sua paixão pela música.
O trabalho está dividido em dois capítulos – A Música em O nascimento da tragédia: o encantamento por Wagner e A música em O Caso Wagner: desencantamento e doença – e se propõe a mapear parte dessa relação entre Friedrich Wilhelm Nietzsche e a música, buscando evidenciar qual a importância que esse filósofo dava à mesma, bem como entender o significado dessa relação para a afirmação da vida.
A MÚSICA EM “O NASCIMENTO DA TRAGÉDIA”: O ENCANTAMENTO POR WAGNER
Copleston, em seu livro Nietzsche, Filósofo da Cultura, escreve: “Aquela alma poética e idealista não podia deixar de ter sido influenciada pela atmosfera religiosa da sua infância, pelos ofícios e música da igreja rural” . O mesmo autor ainda conta que foi em Naumburg que a música começou a desempenhar um papel importante na vida de Nietzsche. Já adulto Nietzsche veio a ser um dos mestres da literatura alemã e continuou a sentir uma paixão profunda pela música.
Nessa época, o filósofo tinha Platão e Ésquilo como seus autores clássicos favoritos. Compondo poemas e música, fundou com alguns amigos uma agremiação literária denominada Germânia. Mas foi na universidade que Nietzsche, como aluno, passou a tratar das relações entre a música e a tragédia grega. Em Leipzig, escreve ele: “três coisas constituem para mim uma consolação: o meu Schopenhauer, a música de Schumann e, ultimamente os meus passeios solitários”.
Seu primeiro livro O nascimento da tragédia no Espírito da Música, escrito em 1871, foi reeditado em 1886 com o título, O nascimento da tragédia, ou Helenismo ou Pessimismo, obra com fortes influências do filósofo Arthur Schopenhauer e do compositor Richard Wagner. Sobre o livro, Nietzsche esclarece:
Vi por várias vezes citada a minha obra com o subtítulo de “Renascimento da tragédia pelo espírito da música”; olhou-se somente para a nova fórmula da arte, para as intenções, com o escopo wagneriano, não se tendo observando aquilo que esse livro continha de importante. “Helenismo e Pessimismo” seria um titulo mais preciso, dado que ensina pela primeira vez como os gregos se libertaram do pessimismo, com que meios o superaram (…). A tragédia é uma prova precisa de que os gregos não eram pessimistas.
Em primeiro lugar, este livro representa uma homenagem a Richard Wagner, uma interpretação de seus dramas musicais como obras de arte totais que igualam às tragédias antigas. Traz uma dedicatória explícita ao compositor Wagner: “(…) declaro que, por convicção profunda, considero na arte a missão mais elevada e a atividade essencialmente metafísica da vida humana, no que acompanho o pensamento do artista a quem dedico este trabalho, meu nobre companheiro de armas, meu precursor neste difícil caminho”. Em Wagner, Nietzsche pensava ter encontrado um aliado para trazer a tragédia para o palco, como uma transfiguração cultural e resgatar o valor da sabedoria trágica dos gregos para a sua época.
A obra traz a concepção que Nietzsche tinha da tragédia baseada numa visão fundamentalmente nova da Grécia, ou seja, o sentimento trágico da vida é antes a aceitação e celebração dessa, a jubilosa adesão ao horrível e ao medonho, à morte e ao declínio. Ao resgatar o valor do homem trágico grego, Nietzsche elege a música e seus significados para a afirmação da vida: amor, liberdade, fatalismo e morte.
Na juventude, Nietzsche identifica-se de imediato com a filosofia da música do compositor Richard Wagner, quando este redige, em 1870, um escrito em homenagem ao centenário de Beethoven. Passa a acreditar no drama musical wagneriano enquanto possibilidade de uma reforma e revolução na cultura a partir da criação artística. A tragédia não seria o desprezo da existência e sim uma afirmação contrária à cultura metafísica cristã-platônica, a qual padecia a cultura ocidental. Pensa o filósofo ser a música de Wagner o meio ideal para esse fim. Assim, em 1872, Nietzsche escreve seu primeiro livro O nascimento da tragédia.
O jovem Nietzsche afirmava que a união das artes, e em particular das imagens míticas representadas no palco, é necessária para tornar suportável a força destrutiva da música pura que, de outro modo, provocaria a destruição do indivíduo ou dos princípios individuais – tempo, espaço e causalidade.
Destacará dois pontos – ou duas idéias – na sua argumentação. A primeira idéia é buscar a origem, a composição e a finalidade da arte trágica grega. Para isso, ele investigará a antítese entre dionisíaco e apolíneo. Na segunda idéia, Nietzsche denuncia a morte da arte trágica perpetrada por Eurípedes, homem teórico e racional que remete ao poeta e ao artista explicações racionais baseadas nos preceitos socráticos.
Escreve Nietzsche sobre sua obra: “Entre as duas importantes inovações trazidas por este livro a primeira é a interpretação do fenômeno dionisíaco entre os gregos e a segunda é a interpretação do socratismo, instrumento de decomposição grega como tipo decadente, ou o raciocínio em oposição ao instinto”.
Nietzsche distingue na cultura grega dois princípios fundamentais: O apolíneo e o dionisíaco. Nas palavras do próprio filósofo vem a explicação:
“Que significam as oposições de idéias entre apolíneo e dionisíaco que introduzi na estética, ambas consideradas como categorias de embriaguez? A embriaguez apolínea produz, acima de tudo, a irritação dos olhos que confere aos olhos a faculdade da visão. O pintor, o escultor, o poeta épico são visionários por excelência. Em contrapartida, no estado dionisíaco, todo o sistema emotivo está irritado e amplificado: de modo que descarrega de um só golpe todos os seus meios de expressão, expulsando sua força de imitação, de reprodução, de transfiguração, de metamorfose, toda espécie de mímica e de arte de imitação".
É então exposta sua tese: a tragédia grega nasce a partir do coro dos sátiros e desenvolve-se da luta entre as duas pulsões estéticas – a apolínea e a dionisíaca. Sendo Apolo o deus da clareza, da harmonia e da ordem e Dioniso, o deus da exuberância, da desordem e da música. Nietzsche conclui que os dois princípios são, na verdade, complementares entre si e, não sendo antagônicos, formam uma aliança, fazem uma reconciliação. Essa ligação estabelecida entre o culto dionisíaco e a arte trágica fornecerá a hipótese necessária à sua teoria da tragédia.
Expressando a força existente nos mitos e o papel da música, encarnada no coro, Nietzsche destaca quais importantes funções desempenhavam as tragédias gregas. Sua obra faz uma análise profunda sobre a cultura grega, ressaltando a conexão entre o sentido do trágico e a expressão musicalmente vigorosa da visão mítica.
O papel da tragédia seria então o de resgatar o mito, dar-lhe um conteúdo mais profundo, uma forma mais expressiva, realizar a verdadeira união entre música e mito. O instinto era despertado no homem e este, num estado dionisíaco, sentia a própria vida, fundindo-se a ela. Segundo Nietzsche:
(…) O homem dionisíaco é incapaz de não compreender uma sugestão qualquer, não deixa escapar nenhum vestígio de emoção, possui no mais alto grau o instinto compreensivo e advinhador, como possui no mais alto grau a arte de se comunicar com os outros.
Para o filósofo, o que torna a arte trágica possível é a música e ele busca a valorização da música para pensar a tragédia grega como uma arte fundamentalmente musical ou com origem no espírito da música. O mito trágico, enquanto símbolo sublime oriundo da música, arranca o ouvinte espectador de seu sonho de aniquilação orgiástico, fundindo-o à natureza, diluindo sua individualidade. Em sua analise, Nietzsche denuncia a percepção do valor íntimo do trágico, captável através da música conjugada à força plástica do mito.
O objetivo metafísico supremo da tragédia e da arte em geral era, portanto, que a imagem apolínea protegesse e revelasse – tal qual um véu que mostra e esconde – a força destrutiva do dionisíaco. Desse modo, tem-se “Dioniso falando a língua de Apolo, mas Apolo, ao final, falando a língua de Dioniso”.
Os conceitos de apolíneo e dionisíaco aparecem no sentido da essência e da aparência, da representação e da vontade, de Schopenhauer. Descreve que os deuses e heróis apolíneos são aparências artísticas que tornam a vida desejável, encobrem o sofrimento pela criação de uma ilusão, ou seja, é o princípio da individuação, processo de criação do indivíduo. Já o Dionisíaco é a harmonia universal dada pela experiência de reconciliação das pessoas com as pessoas e com a natureza. Tem um sentido místico de unidade e escapa da individuação, se fundindo ao uno, ao ser e integrando a parte com o todo ou a totalidade.
O Apolíneo, enquanto princípio da individuação, determina as formas da aparência e proporciona a medida, a divisão, a figuração, manifestando-se, sobretudo, na pintura, na escultura e no ritmo das músicas cadenciadas. O Dionisíaco, enquanto uno primordial, diz respeito à destruição de toda individuação, a uma total e desmedida embriaguez, manifestando-se principalmente na melodia e na harmonia dissonante, presentes na música cantada pelo coro dos sátiros.
A junção dessas duas pulsões, proporcionaria ao espectador da tragédia, segundo Nietzsche, a possibilidade de entrar em contato com a força destruidora de Dioniso, sem que, entretanto, fosse destruído por ela, pois serviria de salvação pelo poder da bela aparência oferecida por Apolo. Ambas as pulsões tornam-se fundamentais ao homem, pois a imaginação figurativa, que gera as artes da aparência (as palavras poéticas e as artes plásticas) e a potência emocional, que dá voz e vez à música, são asseguradas no prazer estético produzido pelo horror encenado na tragédia grega. Nesse sentido, Nietzsche percebe que:
“A vida no fundo das coisas, a despeito de toda a mudança dos fenômenos, é indestrutivelmente poderosa e alegre. Esta consolação aparece com nitidez corporal como coro de sátiros, coro de seres naturais que vivem inextinguivelmente por trás de toda a civilização (…)”.
A aliança ou reconciliação entre os dois princípios aparece para estabelecer o culto dionisíaco e a arte trágica. Assim, a multidão encantada de sátiros e silenos dá origem à tragédia, permitindo a possessão causada pela música, onde esta é a expressão imediata e universal da vontade, como essência do mundo. Em suma, a tragédia, fundada na música, é a expressão das pulsões artísticas apolíneas e dionisíacas, ou seja, é a união da aparência e da essência, da representação e da vontade, da ilusão e da verdade. É a atividade que permite o acesso às questões fundamentais da existência.
A música, enquanto arte essencialmente dionisíaca, é o meio para se desfazer da individualidade. Nesse caso, ela é acrescentada de componentes apolíneos – cena e palavra – e o coro dionisíaco se descarrega em um mundo apolíneo de imagens. O mito trágico, criado pelo coro, apresenta uma sabedoria dionisíaca através do aniquilamento do indivíduo heróico e de sua união com o ser primordial, o uno originário (vontade). A finalidade é “aceitar o sofrimento com alegria” como parte integrante da vida, uma vez que o aniquilamento do indivíduo nada afeta a essência da vida.
A tragédia é na definição nietzschiana: “Um coro dionisíaco que incessantemente se descarrega num mundo apolíneo de imagens” e, ainda, “O coro, em seu primeiro estágio, na tragédia primitiva, é a imagem que a natureza dionisíaca percebe de si mesma”. Portanto, “o coro dos sátiros é, antes de mais nada, uma visão da multidão dionisíaca, como é, por seu turno, o mundo do palco uma visão desse coro satírico”. O filósofo tenta arrancar a música ao texto, relançar suas potencialidades significantes antes de toda captura pela palavra ou pela idéia.
Porém, com o advento da razão em detrimento do instinto, surge o socratismo de Eurípedes, usando as palavras do filósofo, o qual baseia-se no fato que “tudo deve ser inteligível para ser belo” ou, como dizia Sócrates, “tudo deve ser consciente para ser bom”. Eurípedes expulsa o elemento dionisíaco, original e onipresente, da tragédia e o substitui por um teatro para a arte, para a moral e para a compreensão que não eram dionisíacas.
Eurípedes, contudo, era apenas uma máscara desta razão preponderante, uma vez que “A divindade que falava através dele não era Dioniso, não era Apolo, mas um demônio recém-nascido e chamado Sócrates – tal é a nova contradição – o dionisíaco e o socrático – e nesta contradição faliu a obra de arte que era a tragédia grega.” [16] Eurípedes transforma-se no poeta do socratismo estético.
Esse espírito racionalista de Eurípedes não é a única causa da morte da tragédia; ele é, em última instância, manifestação de algo mais profundo – o racionalismo socrático – resumido nas três fórmulas: “Virtude é saber”, “só se peca por ignorância” e “o virtuoso é feliz”. Em detrimento do saber mítico, começa a preponderar uma dialética e uma ética otimista, que pressupõe serem os problemas essenciais da existência resolvidos pelo saber racional. Desprezando o instinto, o socratismo condena e arruína a arte trágica.
Conforme Nietzsche, isso desvalorizou a sabedoria instintiva ou inconsciente, a visão mítica do mundo. Se o que se toma como critério é o grau de clareza do saber ou a consciência teórica do artista, a arte trágica estaria desclassificada e sua morte decretada. Consequentemente, o desaparecimento e a morte da arte trágica levam consigo o saber instintivo, a expressividade mítica e o sentir primordial, todos importantes à existência humana. Estava arruinada na medida em que a metafísica racional socrática e criadora do espírito cientifico estavam sobrepostos à metafísica do artista trágico.
Nesse sentido, Sócrates põe fim à afirmação do homem trágico. Em sua denúncia, afirma Nietzsche: “Aqui sobrepõe-se o pensamento filosófico à arte para a obrigar a cingir-se ao movimento da dialética. (…) Sócrates, herói dialético do drama platônico, lembra-nos o herói de Eurípedes, que também é forçado a justificar os seus atos pelo recurso da razão e do argumento, e muitas vezes assim se arrisca a perder a nossa compaixão trágica”. Assim, a dialética socrática distingue dois mundos: o essencial (verdadeiro e inteligível) e o aparente (falso e sensível).
Como juiz de sua própria arte, Eurípedes faz de sua poesia o eco de seu pensamento consciente, mas ao reavaliar elementos da tragédia como a linguagem, os caracteres, a construção gramática e o coro, exclui o componente dionisíaco da tragédia, e com este, a música. A crítica nietzschiana vem rapidamente, escrevendo ele:
“A dialética otimista, munida com o açoite de seus silogismos, expulsa a música para fora da tragédia: isto é, destrói a própria essência da tragédia, que só se deixa interpretar como manifestação e figuração de estados dionisíacos, como simbolização visível da música, como mundo sonhado por uma embriaguez dionisíaca”.
Para Nietzsche, a grande tragédia grega apresenta como característica o saber místico da unidade da vida e da morte e, nesse sentido, constitui uma “chave” que abre o caminho essencial ao mundo. Os homens viviam seus deuses, que mostravam a vida sob um olhar glorioso. Na tragédia grega, a platéia participava também, era artista. Nos cultos, o deus se revela, mostrando o drama da individualização. Conclui assim que, a filosofia dos pré-socráticos é afirmadora da vida e da natureza, pois o pensamento está unido com esse fenômeno, a vida.
Partindo da descoberta do dionisíaco no cerne da civilização grega, Nietzsche redescobre de modo inovador, a conexão entre o sentido do trágico e a expressão musicalmente vigorosa da visão mítica. Numa de suas intuições geniais, exaltou a força expressiva que o mito desempenha na tragédia grega. Inspirado, como Wagner, nas teses shopenhauerianas, teve os relâmpagos de compreensão que o pensamento domesticado da época recebeu como afrontas ao senso comum.
Empregando o mito na tradução plástica do conflito íntimo de forças do psiquismo humano, os grandes trágicos, ao tomar essa “matéria” como substância do trabalho, superava as limitações sociais das inspirações de seu tempo, passando a criar fora do tempo e para todos os tempos. A função fundamental das tragédias é descrita por Nietzsche como o “poder que excita, purifica e descarrega a vida inteira de um povo”.
A música, na visão nietzschiana, era a experiência da verdade dionisíaca indissociável da aparência apolínea. O grande significado e papel da música é manter a possibilidade de acesso à realidade da natureza. A música seria a voz da natureza, a voz da realidade interior da vida. Fundar um Estado sobre a música é fundar um Estado sobre a própria realidade, como teriam feito os antigos helenos.
Além da filosofia de Schopenhauer, foi com essa perspectiva citada que o filósofo sentiu-se atraído e entusiasmado pelo projeto wagneriano de regeneração da cultura alemã. Nietzsche acreditava estar a linguagem dos homens modernos pervertida. Eles se tornaram escravos dos homens, das convenções, dos artificialismos, do pensamento correto, das idéias claras e distintas. Com a música, dar-se-ia um retorno à natureza, além de todos os limites e enquadramentos da linguagem.
Quanto ao seu distanciamento de Schopenhauer, escreve Nietzsche: “A tragédia está longe de demonstrar algo a favor dos pessimistas gregos, no sentido de Schopenhauer, que poderia antes ser considerada como sua refutação definitiva, como seu julgamento. A afirmação da vida, mesmo em seus problemas mais estranhos e mais árduos; a vontade de viver, regozijando-se no sacrifício de seus tipos mais elevados, por seu próprio caráter inesgotável – é o que chamei de dionisíaco, é nisso que acreditei reconhecer o fio condutor para uma psicologia do poeta trágico”, pois:
(…) só as almas mais espirituais, admitindo-se que sejam as mais corajosas, é dado viver as tragédias mais dolorosas: mas é por isso que estimam a vida, porque ela lhes opõe seu maior antagonismo. O filósofo pensa a música como arte dionisíaca que traduz diretamente a dor e o prazer do querer, maximizando a vontade de vida, pois “(…) só é poeta o homem que possui a faculdade de ver os seres espirituais que vivem e brincam em torno dele; só é dramaturgo o homem que sente o impulso irresistível de se transformar e de falar mediante outros corpos e outras almas”.
Em suma, sua análise, por meio de uma intuição excepcional, resgata e reconhece a percepção do valor íntimo do trágico, sendo este captável através da música conjugada à força plástica do mito.
Assim permanecerá o pensamento nietzschiano até a publicação de O Caso Wagner, em 1888, onde Nietzsche, desencantado com Wagner e sua música, faz um profundo e impiedoso exame sobre o drama musical wagneriano e seus “males”.
Nietzsche conheceu o compositor Richard Wagner em 1868, em Tribschen. O efeito de Wagner sobre Nietzsche foi imediato e esse passa a considerá-lo como um bom representante de Dioniso que tanto buscava. O filósofo passa a ver no compositor a representação de seus ideais quanto ao pensamento schopenhauriano e o resgate ao valor do mito e da música, como forças afirmadoras e criativas. Para Nietzsche, Wagner era o poeta, o músico, o dramaturgo ditirâmbico que exprimia mais transparentemente o pensamento de Schopenhauer. Por meio de sua música, a arte poderia retornar à sua origem na antiguidade e recuperar a união entre vida e sentimento.
Em busca de uma música verdadeira que deixasse soar em si o som total do mundo, Nietzsche fica, a princípio, encantado com a música wagneriana. O drama musical wagneriano poderia recuperar o impulso dionisíaco desaparecido com o socratismo e ser a flauta do deus Dionísio, com seu poder transformador. Porém, essa relação passará de um encantamento – com expressiva amizade e defesa – a uma decepção, seguida de afastamento e críticas.
Foi uma “ilusão” pensar o drama musical wagneriano como uma salvação do sofrimento pelo desconforto enfrentado na cultura. Sobre sua primeira obra dedicada a Wagner, Nietzsche esclarece:
“Para ser justo com O nascimento da tragédia (1872), será preciso esquecer certas coisas. Ele (Wagner) surtiu efeito e mesmo me fascinou pelo que nele era defeito – por sua aplicação ao wagnerismo, como se fosse um sintoma de começo. Esse escrito foi, por isso mesmo, na vida de Wagner, um acontecimento: foi desde então que puseram grandes esperanças no nome de Wagner (…), me lembram que sou eu propriamente o responsável, se uma tão alta opinião sobre o valor cultural desse movimento prevaleceu”.
Quando escreveu a obra acima citada, Nietzsche estava envolvido com o wagnerianismo, sua música e suas idéias. Neste aspecto a ópera wagneriana seria uma revolução. O filósofo traria, junto com Wagner, a “sabedoria trágica” dos gregos – seu pulsar de vida instintiva e mítica – para a sua época. Havia um sonho: transformar a cultura metafísica cristã-platônica, a qual negava a vida, para a celebração desta e sua afirmação. E ainda, o racionalismo exacerbado de Sócrates já tinha fincado raízes bastante profundas. Era preciso interpretar a multiplicidade do homem e re-valorizar o instinto dionisíaco tiranizado pela razão.
A identificação inicial com as idéias wagnerianas estava intensa quando escreveu O nascimento da tragédia, mantendo-se, inclusive, após a sua publicação. Entusiasmado, escreve (a Rohde), em 28/01/1872: “Firmei um pacto com Wagner. Você nem pode imaginar como agora estamos próximos e como nossos planos se tocam”.
No começo do século 19, a busca pelo mito possuía fortes causas para seu ressurgimento, tornando-se um meio de apaziguar as dores da existência. Nietzsche pensa na elevação da arte como sendo capaz de uma recriação da cultura mítica. Os mitos e sua existência davam ao homem a força necessária para encarar a vida, tornando-os soberanos e poderosos, à medida que superavam suas dificuldades.
Com a perda do mito, o homem encontrava-se só e já não podia mais buscar essa força. Ainda tinha que encarar o contexto da época: fim do Iluminismo, autoquestionamento das limitações da razão e quebra da sociedade pós-feudal, trazendo conseqüências penosas – utilitarismo econômico e egoísmo privado. O homem sente-se sozinho, apavorado e enfraquecido. A unidade social, antes reunida pelo mito, também estava perdida.
Surge O Caso Wagner e, como uma espécie de “breve descanso”, Nietzsche escreve essa obra no intuito de esclarecer seu afastamento quanto ao papel revolucionário que a música wagneriana teve para ele. Sua reverência ao compositor é destruída, surgindo assim um desencantamento e conseqüente distanciamento, definitivos na relação de amizade junto a Richard Wagner.
Numa carta ao amigo Peter Gast, datada em 17/7/1888, o filósofo escreve:
“[...] Caro amigo, você se recorda do pequeno panfleto que escrevi em Turim? Está sendo impresso agora; e peço encarecidamente a sua colaboração. Naumann (o editor) já tem o seu endereço. O título é O Caso Wagner: um problema para músicos”.
Na época, Wagner ainda tinha pensamentos revolucionários, defendendo que a corrupção da sociedade também corrompia a arte. Defendia ele que “o mais alto objetivo do ser humano é o artístico”. Quando de sua amizade com Nietzsche, Wagner estava politicamente mais “calmo”, porém não havia ainda abandonado seu desejo de pensar a arte enquanto elemento revolucionário. Muda seu pensamento e adota ideais ascéticos e cristãos, transformando essa arte numa espécie de estética mercantil e de entretenimento, um espetáculo sedutor, com efeitos calculados e hipnóticos junto ao público.
Numa de suas sessões cortadas do livro O Caso Wagner, Nietzsche revela: “(…) Mas falemos do mais famoso dos schopenhauerianos vivos, de Richard Wagner. A ele aconteceu o que já sucedeu com muitos artistas: enganou-se ao interpretar os personagens que havia criado e não compreendeu a filosofia implícita em sua arte mais característica”.
O que Nietzsche esperava de Wagner e seu drama musical era a re-união dionisíaca nas camadas profundas do sentimento, a significação mítica da vida. Agora, sentindo a volta “lenta e servil” de Wagner ao cristianismo e à igreja, afasta-se do compositor e de seu projeto cultural católico e germânico. Tinha que subtrair essa dominação, pois não compartilhava da mesma idéia. Em seu escrito autobiográfico, esclarece aos leitores:
“Para fazer justiça a esta obra (O Caso Wagner) é necessário sofrer a fatalidade da música como se fora a dor de uma chaga aberta. De que sofro, quando padeço o destino da música? Ressinto-me de que a música tenha sido privada do seu caráter afirmativo e transfigurador do mundo, que se tenha tornado música de decadência, não sendo mais a flauta de Dioniso… Contudo, ainda que se admita a causa da música como uma causa própria, como a história dos próprios sofrimentos, reconhecer-se-á que esta obra é cheia de considerações e sobremodo indulgente”.
Em novembro de 1874, na inauguração da Casa dos Festivais em Bayreuth, Wagner atinge o auge de sua carreira. Explica Safranski:
“Richard Wagner distingue o cerne da religião de seu aparato míticocom seus dogmas e cerimônias complicados e discutíveis – todo o fundo de tradição religiosa que apenas sobrevive na medida em que é reforçado pelos hábitos e protegidos pelo poder oficial. (…) queria atingir o efeito sacralizador e redentor através do caráter da obra de arte total. A arte tem de mobilizar todas as forças. Temos a música, que encontra para o indizíveluma linguagem que só a sensibilidade compreende; temos a ação no palco, os gestos, a mímica, a configuração espacial e, sobretudo, o ritual festivo dos dias de espetáculo, todos reunidos em torno do altar da arte. (…) nesses esforços ele é um expoente do comércio de arte que tanto odeia. Sua arte (…) torna-se um ataque generalizado a todos os sentidos”.
Ao criar expectativas sobre o drama musical wagneriano, enquanto desprendido de pretensas convenções ou impregnados de leis, Nietzsche rompe com o compositor e se desencanta, mudando seu pensamento. A música wagneriana não seria mais um veículo confiável para se afirmar a vida. A arte do notável músico, considerada antes como o renascimento da arte da Grécia, agora é pensada como “uma grande corrupção para a música, cuja função é o passe hipnótico e a excitação de nervos cansados”.
As divergências aparecem e “O que vai separá-los depois dessa harmonia inicial será o contraste entre uma produção de mitos que exige validade religiosa (Wagner) e um jogo estético com o mito a serviço do viver (Nietzsche)”.
Em O Caso Wagner vem a crítica:
“Wagner não era músico por instinto. Ele o demonstrou ao abandonar toda lei e, mais precisamente, todo o estilo na música, para dela fazer o que ele necessitava, uma retórica teatral, um instrumento de expressão, do reforço dos gestos, da sugestão, do psicológico-pitoresco. Nisso podemos tê-lo como inventor e inovador de primeira ordem”.
Nietzsche acusa Wagner de colocar sua música a serviço da decadência cultural e contra tudo que se esperava de revolucionário. Além de produzir espetáculos para a burguesia e todo tipo de Filiteísmo, essa música servia ainda como instrumento anestesiante da religião.
Sobre esse rompimento, Janz, de maneira lúcida e neutra, distingue três níveis nessa mudança da relação entre Nietzsche e Wagner, quer sejam:
“(…) o humano-pessoal, o religioso e filosófico e o histórico-espiritual. Wagner tinha uma personalidade exuberante, mas também dominadora e intolerante para com outros artistas (como Brahms). Nietzsche tinha de subtrair a essa dominação. Wagner nasceu em 1813 – mesmo ano do pai de Nietzsche – e ele em 1844. Não era uma relação inter pares. É preciso lembrar que, enquanto Wagner já era famoso mundialmente, Nietzsche era um jovem desconhecido. No plano filosófico e religioso, as divergências foram se acentuando. Nietzsche rompeu com o cristianismo aos dezessete anos, um passo doloroso, documentado também nas composições da época, que eram sacras (oratórios), e subitamente passaram à profanas. Quando Wagner compôs o Parsifal, Nietzsche acreditou ver na obra uma conversão ou recaída do velho Wagner no cristianismo – o que era para ele uma grande ofensa. (…). Nietzsche também desaprova o apego de Wagner à filosofia pessimista de Shopenhauer. O terceiro plano é a superação do romantismo por Nietzsche”.
Enquanto o livro O nascimento da tragédia trazia dedicatória ao compositor, reconhecendo sua música quanto à importância que esta poderia trazer ao prenunciar uma nova cultura e um melhor relacionamento entre os homens, em O Caso Wagner, Nietzsche rompe definitivamente com esse pensamento, afirmando ser a música de Wagner doente e possuidora de sentido moral, religioso e metafísico. A música, significando o princípio básico da estética nietzschiana, não poderia negar a existência, ao contrário, deveria sim afirmá-la e torná-la mais livre.
Dessa forma, o drama musical wagneriano não estava livre de pretensões metafísicas ou redentoras, acabando por se tornar altamente ideológico – como já tinha mostrado a história, de modo trágico – e consequentemente perigoso à afirmação da vida.
Nietzsche reconhecia em Wagner um Ésquilo moderno, o qual poderia restaurar os mitos instintivos, tornando a unir a música e o drama em êxtases dionisíacos. É esse o caráter de sua música que, segundo Nietzsche, junto com o povo alemão, iria restaurar o mundo experimentado sob transe místico.
O filósofo, que até então interpretara a música de Wagner como o "renascimento da grande arte da Grécia", mudou de opinião, achando que Wagner inclinava-se ao pessimismo sob a influência de Schopenhauer, convertera-se declaradamente ao cristianismo, entre outras divergências. O que parecia ser a música de Wagner um indício de cura, de regeneração, de recuperação e de liberdade, apresenta-se como o sintoma mais definitivo do fracasso, da doença, da perda e da ruína.
Wagner já não produzia mais música que exalasse calor e vida, tendo se transformado em um “(…)artista da décadence – eis a palavra. E aqui começa a minha seriedade. Estou longe de olhar passivamente, enquanto esse decadent nos estraga a saúde – e a música, além disso! Wagner é realmente um ser humano? Não seria antes uma doença? Ele torna doente aquilo em que toca – ele tornou a música doente”.
Wagner voltara-se ao cristianismo e Nietzsche enganara-se, pois, segundo ele, “Richard Wagner, aparentemente um herói conquistador, mas agora um decadente desesperado que apodreceu, deixou-se afundar subitamente, impotente e alquebrado, diante da Cruz Cristã”.
O Nietzsche de 1872 enganara-se quando acreditou na possibilidade de uma arte dionisíaca esquiliana na Europa, através de Wagner. O seu ressentimento atenuou-se por saber o quanto Wagner, e sua própria arte, estavam vivendo uma fase decadente. Porém, Nietzsche ao tomar consciência dessa crise, procura superar-se criando uma filosofia de crítica aos valores de uma sociedade burguesa arruinada culturalmente. E a norma socrática de decadência “conhece-te a ti mesmo” deveria ser substituída pela norma mais humana do “supera-te a ti mesmo”, porque o homem não precisa senão de si mesmo.
Sua crítica a essa metafísica da arte, aliada com a rejeição à filosofia de Schopenhauer, passa a falar agora aos europeus do futuro. De fato, O Caso Wagner é realmente um ataque contra Wagner, mas “mais ainda um ataque contra a nação alemã que vem se tornando cada vez mais preguiçosa e desprovida de instinto nas coisas do espírito”, escreve ele. Nietzsche lamenta, além disso, que Wagner ao envelhecer tenha se germanizado.
A música wagneriana revelou-se e perdeu o seu valor para Nietzsche. Wagner não podia ser sincero e essa ruptura, todavia, está na compreensão da música wagneriana como uma expressão e índice da decadência e da impossibilidade de se realizar uma arte vigorosa, uma arte heróica e poética; a música alemã jamais poderia levar ao renascimento da tragédia na cultura européia.
A filosofia musical de Nietzsche unida a Wagner foi uma tentativa do filósofo em entender o universo sonoro musical como revelação de uma verdade abissal sobre o ser humano. Porém, ao subordinar a música ao drama, o que o filósofo repreende no compositor é este usá-la como instrumento das idéias religiosas e da moral, transformando-a em arte de sedução e de hipnose, alienação e anestesiamento. Sobre sua “amizade estelar” com Wagner, escreve no seu livro A Gaia Ciência:
“Nós éramos amigos e nos tornamos estranhos um para o outro. Mas está bem que seja assim, e não vamos nos ocultar e obscurecer isto, como se fosse motivo de vergonha. Somos dois barcos que possuem cada qual, seu objetivo e seu caminho; podemos nos cruzar e celebrar juntos uma festa, como já fizemos – e os bons navios ficaram placidamente no mesmo porto e sob o mesmo sol, parecendo haver chegado a seu destino e ter tido um só destino. (…) e assim vamos crer em nossa amizade estelar, ainda que tenhamos de ser inimigos na terra”.
Nietzsche não busca um ideal de verdade, mas antes o valor do artista e de sua arte na busca de uma interpretação que fixe o sentido dos fenômenos, reconhecendo-os como fragmentários e parciais. Ao maximizar a pulsão instintiva do homem, sua sabedoria, força criativa e afirmadora da vida, reconhece na música essa força, pois esta traz junto a possibilidade de fusão entre homem e natureza, indivíduo e existência, a aproximação verdadeira entre o uno primordial e o cosmos.
Importava para ele uma música distante de lágrimas e de culpas ou a que estivesse mais próxima da vida, causando-lhe um estremecimento de temor. Em suas palavras, descreve: “(…) Direi ainda uma palavra para os ouvidos mais seletos: o que eu quero propriamente da música. Que ela seja serena e profunda, como uma tarde de outubro. Que seja singular, travessa, terna, uma doce pequena mulher de baixeza e encanto… (…)”.
Somente a música dionisíaca, livre de moralismos e castidades, possibilita o reaparecimento dessa pulsão instintiva e vital no homem, podendo despertá-lo para uma existência (também) livre de remorsos, ressentimentos e crises de consciência, numa associação entregue à coragem, ao heroísmo e ao fatalismo. Para o filósofo, plena de vida e sedenta de liberdade é a música dionisíaca, pois expressaria a força e a fatalidade no homem. Nesse sentido, afirma Nietzsche:
“A música, como a entendemos hoje, não é igualmente senão uma irritação e uma descarga completa das emoções, mas não é mais que o resto de um mundo de expressões emocionais muito mais amplo, um resíduo do histrionismo dionisíaco. Para tornar a música possível, enquanto arte especial, imobilizou-se certo número de sentidos, em primeiro lugar o sentido muscular (ao menos em alguma medida: pois, sob um ponto de vista relativo, todo ritmo fala ainda a nossos músculos): de maneira que o homem não possa mais imitar e representar corporalmente tudo o que sente. Contudo, este é precisamente o verdadeiro estado normal dionisíaco e, em todos os casos, o estado primitivo; a música é a especificação desse estado, especificação lentamente adquirida, em detrimento das faculdades próximas”.
A relevância do instinto para o homem, enquanto ser livre que sente e flui no mundo, é acentuada em todo momento no pensamento nietzschiano. Dias reforça a idéia destacando que:
“Para Nietzsche, a tragédia não é apenas uma nova forma de arte ou um novo capítulo na história da arte, ela tem a função de transformar o sentimento de desgosto causado pelo horror e absurdo da existência, numa força capaz de tornar a vida possível e digna de ser vivida. Para Nietzsche, o verdadeiro valor do homem reside no instinto, pois é na realização do instinto que ele encontra sua expressão espontânea e livre, criando e recriando”.
Quando o filósofo pergunta: “Já se percebeu que a música faz livre o espírito? dá asas ao pensamento? que alguém se torna mais filósofo, quanto mais se torna músico?", ele quer afirmar a força artística e interpretativa, próprias da vida, que mais tarde vai chamar de vontade de potência, como música.
O Dionisíaco é esta música que, ao se manifestar, precisa necessariamente da transposição apolínea da representação, pois “(…) a luta, a dor, a destruição dos fenômenos aparecem necessárias para nós”. Ambas as pulsões “deixam entrever algo de mais profundo que transcende qualquer herói individual; o eterno vivente criador”. Ainda, “somente a partir do espírito da música entendemos a alegria diante do aniquilamento do indivíduo”.
Ao criticar e excluir da história da música os últimos dramas musicais wagnerianos, Nietzsche separa os aspectos positivos da música, ou seja, esta enquanto transmissora de estímulos vitais, afirmadora da existência, a que clama “sim” à vida, daquela música doente, decadente, enquanto mecanismo de manipulação e apatia, transformada e transfigurada em omissões, cuja função é anestesiar, alienar e distanciar o homem do valor de sua existência.
A música, sendo uma linguagem universal em alto grau, expressa todas as sensações humanas e seus esforços, podendo o homem exprimir-se pelas melodias. O peso da existência é atenuado com estimulantes. Dessa forma, a música recupera a vida, transporta beleza e desenvolve uma multiplicidade de sensações positivas à existência. Enquanto mecanismo ativo de estímulo e criação, a música afirma a vida e se torna importante elemento artístico, cuja função é criar homens voltados à vida e à cultura.
Com efeito, a música é a voz sonora de um povo, de uma cultura, de uma verdadeira arte. Nietzsche reforça a idéia quando destaca que:
“A música é, de fato, não uma linguagem universal para todos os tempos, como se tem dito muitas vezes em seu louvor, mas corresponde exatamente a um período particular e ao ardor duma emoção que envolve uma cultura individual e perfeitamente definida, determinada pelo tempo e pelo espaço, como a sua mais íntima lei”.
O pensamento Nietzschiano, ao criticar as formas decadentes da arte musical, relaciona-se diretamente com o sentido afirmativo da existência, clamando “sim” à vida. Afirma o filósofo:
“A música é a última planta a vir à luz, aparecendo no Outono e na estação morta de cultura a que pertence. O século XVIII – século da rapsódia, dos ideais desfeitos e da felicidade transitória – apenas se revelou na música de Beethoven e de Rossini. O amador de sorrisos sentimentais bem podia dizer que toda a música realmente importante foi um canto de cisnes”.
A crítica, conforme cita Copleston, “é direcionada às culturas tirânicas, onde o homem está submetido e governado ao que ele chama de o incorreto sentir, pois se desejam falar, a convenção segreda-lhes a réplica que hão de dar e isso os obriga a esquecer o que, a princípio, tencionavam dizer. (…) Desta forma se transformam em pessoas absoluta e completamente diferentes, ficando reduzidas a objetos escravos de um incorreto sentir”.
Copleston segue em seu argumento explicando:
“Mas quando os acordes da música dum mestre desabam sobre uma humanidade assim doente e sofredora, o significado dessa música é o correto sentir, inimigo de toda a convenção, de todo isolamento artificial e de toda a falta de compreensão de homem para homem. Essa música significa o regresso à natureza e, ao mesmo tempo, uma purificação e remodelação dessa mesma natureza”.
Percebe-se que, desde O nascimento da tragédia até O Caso Wagner, Nietzsche, por meio de seu pensamento genial e incomparável, tenta elevar o valor sobre a questão da existência. O homem, possuidor de instinto e de razão, não poderia omitir um em detrimento do outro. Nesse sentido, esse “psicólogo” da espécie humana, como se intitulava, formulará profundas e relevantes críticas às doutrinas que menosprezem a vida – como o cristianismo, conforme afirmava – tornando homens livres em submissos e separados da unidade da vida.
A música, enquanto criação humana da arte, apreendida principalmente pelos sentimentos, remete-nos a um recurso otimista revitalizante para suportar a realidade da dor do sofrimento humano. Seu espírito livre e sua capacidade instintiva e criativa são despertados pela herança da cultura mítica grega, como forma de pensar o significado da vida – seu valor e sua força.